domingo, 30 de março de 2008

Um dia na vida de um cirurgião

por Ricardo Leandro



Um dia na vida de um médico hoje em Cuiabá - MT... que se repete em todas as capitais brasileiras. Um país de vergonha.

Doze horas de plantão Noite de sexta-feira. Às 19h quatro cirurgiões e mais outros médicos, enfermeiras, auxiliares de enfermagem e pessoal de apoio assumem a emergência do PS de Cuiabá. Muita gente não quer trabalhar lá, paga mal e as condições não são as melhores. É correr riscos em vão.

A equipe anterior passa três pacientes cirúrgicos, dois dos quais muito graves.O Rx está quebrado. Apenas um anestesista no plantão, o outro está de férias. Quer dizer, de férias desse emprego. Nunca conseguiu conciliar as férias dos dois empregos. O ortopedista têm dois pacientes com fraturas expostas para operar. Metade dos acadêmicos de medicina faltou o plantão. Eles têm prova segunda-feira. Hoje em dia é assim.

É passada a situação para a Central de Regulação de Leitos. Eles informam que a coisa está feia também nos outros hospitais. O HGU tem oito cirurgias indicadas. O PS de VG, seis. Dois cirurgiões sobem para começar as cirurgias. Antes, uma junta médica relâmpago. Quem vai primeiro? Faz-se o ranking. São 22h. Os pacientes com fraturas expostas estão operados. O anestesista já está de mau humor. Já sentiu que a noite vai ser comprida. Que sono! Prestes a começar a décima cirurgia do dia. A sala de recuperação está lotada e não tem vaga na UTI. A ambulância do hospital não pára de levar pacientes para fazer radiografias no PS de VG.

Uma paciente grave da enfermaria de clínica médica desce às pressas para o setor de reanimação. Só tem um elevador funcionando. Que aperto! Entubada. O maqueiro ventila a paciente. O outro levanta o soro. O médico faz a massagem cardíaca. Ela parou de novo. O suor do clínico escorre pela testa. A filha da paciente chora.O coração volta a bater. Já se sabe: não há vaga na UTI. Ganhará na loteria? Terá direito a um respirador na Reanimação? Graças a Deus tem um Bird Mark 7, Um dos mais modernos da década de oitenta.

A 1h da manhã é atendido um senhor de 70 anos com dores fortes no abdome. Seu nome: Severino. Veio do interior do Estado. Estava internado no hospital local há três dias sem melhorar. Após ser examinado na única maca disponível para atendimento, é medicado, solicitam-se alguns exames e reserva-se sangue. Tem que desocupar a única maca disponível para atendimento. É colocado numa cadeira no corredor com seu acompanhante segurando o soro. Em meio a face de sofrimento e a postura curvada pela dor, ainda consegue esboçar um sorriso e dizer: "primeiramente Deus, depois o senhor, doutor." Aguardará até chegar sua vez. Ele tem um abdome agudo e necessita ser operado. Qual a causa? Uma úlcera perfurada? Não dá muito tempo para raciocinar. Mandá-lo para o PS de VG fazer uma radiografia? É judiar demais. Está indicada a cirurgia e ninguém tem dúvida.

Bate fome. Alguns nem jantaram. Pede-se um lanche. Aqueles sanduíches cheios de gordura com refrigerante e uma conversa de cinco minutos foi o combustível para continuar. Chega a vez do Sr. Severino. São 3h da manhã. Os cirurgiões se revezam na madrugada. Sempre dois operando, um atendendo e outro descansando.

Chove lá fora. O movimento diminui. Uma sirene. Som não desejado. Chega um paciente baleado no abdome em choque hipovolêmico. Trazido por policiais com história de que estava assaltando e matou um pai de família. Tem 19 anos. Conhecido como Rico. Ricardo? Ele nem fala. Acorda quem estava dormindo para ajudar. Veia, volume, sangue. Às pressas é levado ao centro cirúrgico. É operado, sai da sala de cirurgia às 7h30. Estável. Sr. Severino sobrou.

Os cirurgiões estão exaustos de uma noite toda operando. São rendidos por outra equipe que por azar está desfalcada. Tem um cirurgião de férias e o outro foi assaltado na vinda para o hospital. Levou um tiro no antebraço. Passa bem. Comentam rapidamente quanto cada um recebeu de produtividade este mês. Os valores variam de R$37 a R$178,00. Algumas risadas. Um nota que a barriga do outro está crescendo. Outro comenta o sucesso da madrugada. Um ar de orgulho e superação. Fora outras lesões, realizou uma boa abordagem e reparo numa lesão de veia cava. É a segunda vez da sua vida que ele opera este tipo de lesão. Um dos cirurgiões que está saindo vai correndo para casa. Tem oito chamadas não atendidas no seu celular. Sua esposa também é médica. Está de plantão no sábado 24h numa maternidade e ele tem que cuidar do filho. Ambos atrasados. Um vai para seu respectivo hospital onde faz residência. Os outros dois vão para policlinicas para mais uma batalha pelo SUS.

Todos já são cirurgiões formados e querem fazer uma segunda residência em especialidades diversas. São cinco anos de residência em média fora os seis de curso. Engraçado, ninguém tem cabelo branco. O mais velho tem 30 anos. Há dez anos tinham mais cabeças brancas na linha de frente.

Bom, um novo plantão já começou. Só dois cirurgiões. Depois de evoluírem os muitos pacientes internados na própria emergência em macas há dias, fecham o atendimento a pacientes cirúrgicos e sobem para começar as cirurgias. Já chegaram mais pacientes cirúrgicos e o cirurgião já começou o dia brigando com os médicos da central de regulação por que eles estão sozinhos e eles continuam mandando pacientes. Parecem jogadores do mesmo time brigando quando o time, ou o clube, ou o técnico vão mal.

A enfermeira chama:tem um paciente parado no setor de Reanimação. Era Sr. Severino que aguardava por cirurgia e caiu no chão próximo ao banheiro. Foi arrastado pelos próprios pacientes e acompanhantes até a Reanimação. A reanimação cardiorespiratória é feita no chão. Ele não resiste. Uma semana depois o Rico teve alta para o presídio e voltará três meses depois para reconstruir o intestino. Saiu com uma colostomia. /O MÉDICO BALEADO FICARÁ TRÊS MESES SEM OPERAR. / /O CASAL DE MÉDICOS E SEU FILHINHO SE ENCONTRARAM DOMINGO À NOITE. ELE TINHA MAIS UM PLANTÃO NO DOMINGO DIA. O LANCHE CUSTOU R$37. / A família humilde do Sr. Severino aceitou a "vontade de Deus".

(Baseado em fatos reais.)

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